sábado, abril 24, 2004

CDS no 25 de Abril (1977)


A 25 de Abril de 1977, Vítor SÁ MACHADO dava voz ao CDS na primeira sessão solene comemorativa do 25 de Abril, na Assembleia da República:

«Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados: Deputado centrista, subo a esta tribuna para, em nome do meu partido, celebrar a Revolução de Abril. Faço-o, fazêmo-lo, com a consciência tranquila de quem se sabe com legitimidade para tanto e com a emoção de quem pode afirmar ter contribuído, com coragem e também com sofrimento, para preservar da Revolução a sua dimensão democrática e, por esse título, a sua essência popular e patriótica. Legitimidade duramente conseguida ao longo de três anos difíceis, durante os quais, sem desfalecimento, soubemos afirmar e manter um projecto incómodo, porque divergente das várias mitologias que sucessivamente dominaram o curso da Revolução.

A história não deixará de prestar homenagem a essa determinação, cuja eficácia moderadora e de estabilização foi contributo decisivo para que o pluralismo inscrito na Constituição seja hoje uma realidade concreta e não apenas, como alguns o desejaram, cambiante diluído e precário de uma unicidade disfarçada.

No quadro de uma revolução cedo desviada dos seus objectivos iniciais por forças de claro comprometimento internacionalista, levado, no Verão de 75, a um paroxismo alucinante pela necessidade de cumprimento de um plano que tinha sobretudo a ver com a corrida a uma nova partilha da África e em que os interesses portugueses, não só nessa área do mundo, mas também no rectângulo europeu, foram subalternizados com a conivência de alguns nacionais, a proposta moderada, portuguesa e pragmática do CDS tornou-se naturalmente motivo de escândalo.

Por todas as maneiras o nosso partido foi atacado, vilipendiado e perseguido. Não desistimos, porém. Valeu-nos a inalterável fidelidade aos valores que inspiram a nossa declaração de princípios, a confiança na personalidade do povo, a nossa fé na democracia e na liberdade. Mantivemos, assim, permanentemente aberta uma alternativa não-socialista, europeia e cristã-democrata ao projecto da revolução socialista. Forçámos, desse modo, a manter alargado o espectro da Revolução e fornecemos, porventura, o lastro necessário para contrariar a tendência aglutinadora e hegemónica da força mais radical e mais bem organizada e com apoios seguros nalguns sectores militares.

Se desde o princípio tudo tínhamos a ver com a Revolução, que nos fizera surgir como partido e com que detínhamos essa solidariedade essencial resultante da identidade de objectivos e de propósitos devolver a soberania ao povo, eliminar as injustiças sociais, resolver com honra a questão colonial, título incontestável passámos a ter após o que foi para nós essa longa travessia do deserto, o combate contra os mecanismos redutores que pretenderam esvaziar de democracia a Revolução, alienar de novo os Portugueses, suprimir a liberdade.
Não o fizemos sós, é evidente. Mas fizemo-lo com grandes sacrifícios, pagámos um preço muito alto, foi nosso o testemunho porventura mais pesado.
E fizemo-lo, sobretudo, de maneira pura, sem capitulações nem seguidismos. É por isso que hoje dizemos com emoção, mas também com firmeza, e com firmeza que não admite réplica ou contradita, que nós também fomos a Revolução. A Revolução que certamente quiseram os militares do 25 de Abril; a Revolução que foi traída pelas aventuras totalitárias; a Revolução que finalmente triunfou com o 25 de Novembro.

Todos sabemos, ai de nós, como o sentido da rotura operada pela Revolução foi em largos passos do seu percurso, de maneira concertada por uns, e irresponsável, por outros, ampliado e desvirtuado de modo a transformá-la de instrumento do reencontro do País consigo mesmo e, as suas verdades profundas na tentativa de destruição da entidade nacional e de sabotagem dos seus fundamentos morais e espirituais. De maneira concertada por aqueles a cuja estratégia interessava a criação do caos que conduziu à dissolução do Estado e à destruição sistemática de muitos dos entrepostos da defesa civil.
De maneira irresponsável por outros, produtos exemplares dessa ignorância histórica da democracia que constitui herança trágica do antigo regime, os quais, no atrevimento da sua mediocridade, pensaram poder utilizar as armas confiadas ao Exército pelo povo, como se de um património pessoal se tratasse. Importa apontar aqui esses desvios que perverteram a Revolução, não porque nos anime um qualquer espírito de vingança, que recusamos, por não acreditarmos que seja possível construir qualquer coisa digna e útil sobre uma moral de ressentimento e de vindicta, mas porque pensamos que a profunda angústia que hoje envolve a sociedade portuguesa, que alimenta a amargura das vítimas da descolonização e que perturba as forças armadas nos exige, a todos, que exorcizemos, quando celebrarmos da Revolução o seu espírito libertador, o que nela existiu de frustrante e negativo; para que, de maneira conscientemente assumida, possamos enterrar os ódios, esquecer os agravos, curar as feridas.

Em torno do espírito autêntico do 25 de, Abril, que é também o do 25 de Novembro, congreguemos esforços na salvação do presente e na construção do futuro. Um futuro livre, democrático e justo. (...)
Porque é falso dizer que em democracia o preço natural das liberdades é a desordem, a criminalidade e a insegurança dos cidadãos. (...)
Nada disso é culpa da democracia. Nada disso é culpa da liberdade. Nada disso resulta do respeito que queremos ver definitivamente estabelecido pelos direitos do homem no nosso país. (...)
Sem democracia o nosso papel no mundo, o nosso orgulho de sermos portugueses, o nosso contributo para as grandes tarefas que se impõem aos povos livres, serão reduzidos a uma expressão nula, violentadora da nossa dignidade e da nossa história.

A democracia é a nossa grandeza, a plataforma para recriarmos, como o fizemos há quinhentos anos o nosso projecto nacional. A democracia é a forma de olharmos confiantes o futuro; de entrarmos, solidários, na Europa; de sermos perante milhões de homens, que no Mundo se exprimem em português os herdeiros dignos e dignificados de uma língua e de uma cultura que são vínculos de fraternidade, de tolerância e de convivência. A democracia é a forma de sermos, na Europa e no Mundo, os portadores de uma mensagem profundamente cristã e libertadora na defesa dos direitos humanos. Porque só nós conseguimos, num curto lapso histórico, essa espantosa vitória de nos libertarmos de tutelas totalitárias de sinais opostos.

Por tudo isso, e porque só ela dará sentido à Revolução, a democracia é para todos nós uma grave e delicada responsabilidade. Mas é-o acima de tudo para quem, por força das opções do eleitorado, detém as rédeas do Poder. Não é esta a hora do discurso político, porque ela é, mais do que isso, a da reflexão histórica Mas a história faz-se com os homens e com as instituições. E perante a história é-nos lícito proclamar, com simplicidade, mas com convicção, que em Portugal, em Abril de 77, se impõe aos governantes um profundo exame de consciência. E não só aos governantes, mas a todos os portugueses.
Que todos possamos ser dignos e estar à altura de responder positivamente ao desafio que a história hoje nos põe. Esse é o da consolidação da democracia, de reconstrução do Estado, da mobilização coerente das enormes virtualidades de um povo que já mais de uma vez foi capaz de, influir decisivamente nos destinos do Mundo.
Se o conseguirmos, então nada terá sido em vão."


[ Ver “Diário da Assembleia da República”, I Legislatura, Sessão n.º 1, n.º 100, págs. 3362-4]