domingo, maio 09, 2004

O escândalo das torturas e maus-tratos a prisioneiros iraquianos


Cartoon de Milt Priggee, 7-Mai-2004, Spokane (WA)

O caso do abuso de prisioneiros iraquianos, sujeitos a humilhações repugnantes, a maus tratos e a torturas, é um escândalo vergonhoso que não tem justificação, nem desculpa. Qualquer indignação só corre o risco de ser pequena.
quase tudo foi dito: traduz um desrespeito humano inaceitável, nega e fere os valores afirmados, mancha o prestígio dos Estados Unidos e do Ocidente, atinge a honra das Forças Armadas armadas e da coligação, dá pretextos à rebelião armada e ao terrorismo fundamentalista, torna mais duras e difíceis todas as coisas para a causa da liberdade, da democracia e da paz.

[ Ver fotos: Washington Post ]

Nenhum relativismo pode ser admitido.
É verdade que Saddam fazia igual e pior, muito pior. Como é verdade que muitas ditaduras islâmicas - e outras - fizeram e fazem o mesmo. Mas nada disso serve de atenuante, justificação ou desculpa.
Indignação, repúdio, condenação são as únicas respostas idóneas diante desta barbaridade.
Porém, não têm razão comentadores que, como Ana Sá Lopes, no PÚBLICO de hoje, apontam a dedo, por exemplo, Pacheco Pereira, como «especialista em indignações selectivas», critica os que chamam a atenção para que «todas as instituições americanas reagiram como deviam» e conclui: «percebe-se o estado acossado em que se encontram, por estes dias, os apóstolos da guerra preventiva, mas o relativismo em matéria de defesa dos direitos humanos é uma demasiadamente sórdida marca histórica da Humanidade. Aqui, no Iraque, em Cuba ou na China, evidentemente.» Nem tem razão Mário Soares, quando exprimindo justa indignação com estes factos brutais, estabeleceu um paralelo directo com os campos de concentração nazis e os Gulags de Estaline.
A verdade é que a comunicação social americana tem-se ocupado extensamente do assunto, sem censuras. Não esconde o que quer que seja, nem poupa nos comentários. Procedimento, aliás, igual em toda a imprensa, rádio e televisão ocidentais.
Como bem cita Ana Sá Lopes, o senador Edward Kennedy disse, causticamente: «No Médio Oriente, o símbolo da América não é a estátua da liberdade, é um prisioneiro encapuçado com cabos no corpo e medo de ser electrocutado.»
o secretário de Estado, Collin Powell, prontamente veio a público condenar os factos e garantiu que tudo seria inquirido e que os responsáveis seriam apresentados à justiça militar. A identidade dos responsáveis foi sendo revelada publicamente e o primeiro julgamento em tribunal marcial já se encontra marcado, escassos dias depois.
O porta-voz da Casa Branca tem assumido e condenado repetidamente estes factos, o mesmo acontecendo com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, confrontado com alegações semelhantes dirigidas contra soldados ingleses.
O secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, apresentou, pública e solenemente, diante do Congresso que o inquiria, desculpas pelos graves factos verificados. É abertamente contestado e questionado na comunicação social do seu país - os EUA - e sujeito a contínuos inquéritos de opinião sobre se deve demitir-se, embora os resultados, nesta altura, sejam favoráveis à sua continuação em funções.
O presidente dos EUA, George W. Bush, dirigiu-se às televisões árabes para apresentar desculpas por estes "actos repugnantes", como os qualificou expressamente, e tem reiterado sucessivamente que se tratou de uma inaceitável mancha na honra dos EUA e que os responsáveis serão julgados e responderão pelos seus actos.
Isto não desculpa nada, é facto. Mas é diferente.
A diferença é positiva e abissal, porque permite denunciar o erro, pôr-lhe cobro e responsabilizar os culpados. Só não percebe a diferença quem esteja de má fé.
Voltemos, então, a Ana Sá Lopes e a Mário Soares. Quanto a Estaline, Hitler, Fidel Castro, Saddam, Khomeini ou Al-Sadr, ou outro qualquer ditador da China, Coreia do Norte, Arábia Saudita ou alhures, ainda estamos à espera:
- que deixassem (ou deixem) conhecer e debater as violações de direitos humanos nos seus regimes;
- que assumissem (ou assumam) as atrocidades, em vez de as negarem;
- que se sujeitassem (ou sujeitem) à crítica interna, ao escrutínio parlamentar e da oposição, a interpelações para a demissão e a inquéritos de opinião;
- que apresentassem (ou apresentem) desculpas:
- que levassem (ou levem) a julgamento os carrascos.
Tem razão Ana Sá Lopes quando condena os relativismos, todos os relativismos. Mas, já agora, comece por si. Se não, o que fica das palavras - suas, de Mário Soares e semelhantes - é apenas, na verdade, como cita, o... "anti-americanismo furioso dos nossos dias".


Cartoon de David Horsey, 7-Mai-2004, The Seattle Post-Intelligencer, Seattle(WA)